Até o próximo domingo (17), o Recife recebe uma programação extensa de filmes feitos por realizadoras árabes dentro da 5ª edição da Mostra de Cinema Árabe Feminino. A grande maioria das sessões acontece no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) do Derby, com sessão de encerramento no cimema São Luiz, na Boa Vista. É uma oportunidade única de conhecer uma variedade de formatos e temáticas do mundo árabe. A programação completa pode ser conferida aqui e todas as sessões são gratuitas.
Logo após o filme de abertura da mostra, o road movie Rainhas, a pesquisadora e jornalista Carol Almeida, que assina a curadoria ao lado de Alia Ayman e Analu Bambirra, conversou com a Marco Zero sobre a escolha dos filmes para a mostra, os preconceitos sobre o Oriente Médio e o papel das mulheres no cinema árabe. Confira abaixo.
Como é o trabalho de curadoria da mostra? Porque se pensa que no mundo árabe as mulheres cineastas são muito poucas. Como realmente é esse cenário?
A existência dessa mostra é justamente para quebrar com todos esses mitos que a gente tem sobre o mundo árabe. E quando eu falo mitos sobre o mundo árabe, eu estou falando muito sobre esse mito de que a mulher no mundo árabe não tem autonomia. É o contrário. Em muitos lugares do mundo árabe, a presença da mulher, particularmente na criação, na literatura, no cinema e na música é central na produção artística.
E no cinema, por exemplo, no cinema palestino ou no cinema libanês, muito do que há de vanguarda na linguagem artística hoje é feito por mulheres. Elas estão na ponta das provocações e experiências estéticas radicais. E a curadoria de uma mostra como essa, que existe desde 2019, é um desafio justamente porque são muitos, muitos filmes para a gente selecionar o que exibir durante uma semana. É um exercício imenso e a gente tem que abdicar de muita coisa que gostamos, inclusive.
Uma das curadoras da mostra, Carol Almeida destaca a experimentação das cienastas árabes. Foto: MCS/MZ
E tem uma diversidade também de formatos, não é? Tem ficção, tem curta-metragem, tem longa-metragem, tem documentário
Sim, tem filmes experimentais. E eu acho muito legal porque essas cineastas árabes trabalham com a radicalidade da linguagem. A diretora que convidamos neste ano para dar uma masterclass é uma diretora libanesa chamada Rania Stephan, que tem um exercício de montagem a partir de imagens de arquivos que é muito radical. Um exemplo é o longa-metragem dela que estamos trazendo para a mostra, que se chama Os três desaparecimentos de Soad Hosni (2011). Soad Honsi era uma atriz egípcia famosíssima, a atriz mais famosa do Egito durante muito tempo. E a diretora, a partir das imagens de arquivo da própria Soad Hosni, nas centenas de filmes que ela fez no Egito, recria a vida dessa mulher com as imagens dos filmes em que ela estava. É uma história inclusive trágica, Soad Hosni morreu de uma maneira trágica. E Rania Stephan recria isso a partir das imagens que já estavam nos filmes em que a atriz estava. Então, são gestos muito radicais. Nesta edição, a mostra tem filmes de ficção, muitos documentários, mas temos filmes experimentais também. É uma diversidade muito grande de experiências estéticas no cinema feminino árabe.
A mostra traz também a obra de cineastas palestinas, em um momento em que ocorre um genocídio da população de Gaza. De onde essas cineastas trabalham? Como é o trabalho delas?
Há muitas diretoras palestinas hoje no mundo. Uma pequena parte dessas diretoras estão hoje na Cisjordânia. Mas é uma pequena parte, porque a maior parte das diretoras palestinas e, obviamente, das diretoras mais radicais, vivem no que a gente chama de diáspora. Vivem em outros lugares do mundo, muitas na Europa, outras nos Estados Unidos. E elas tentam conseguir financiamentos desses outros lugares para conseguir criar cultura, criar linguagem e criar arquivos da Palestina, mesmo fora da Palestina. Então, boa parte das realizadoras que estão trabalhando hoje com essas imagens vivem fora da Palestina e não têm o direito ao retorno. Assim como o povo palestino não tem o direito ao retorno à sua própria terra. O cinema é uma forma delas estarem na Palestina também. Uma forma delas reivindicarem a terra a partir das imagens cinematográficas. Então, temos, sim, algumas diretoras que ainda estão na Cisjordânia e que estão documentando diariamente o que está acontecendo lá, mas uma boa parte dessas realizadoras hoje vive fora do território palestino.
E já existem produções para o cinema que falem do genocídio que está acontecendo desde outubro de 2023 na Palestina?
O último filme que vamos exibir na sessão de encerramento, no cinema São Luiz, é um filme feito em Gaza, pós-outubro de 2023, com imagens de Gaza. É um filme, inclusive, de imagens fortíssimas. Um filme sobre um médico que passou 43 dias dentro de Gaza, tentando, da forma possível, ajudar as centenas e centenas de crianças que chegavam para ele, um cirurgião. E há no filme imagens muito fortes de Gaza pós-outubro de 2023. Então, a gente tem, sim, imagens já feitas dentro do genocídio. Estamos começando a receber as primeiras imagens, as primeiras narrativas que foram filmadas já dentro do contexto do genocídio.
A mostra também tem um filme sobre o Sudão, que também vive massacres violentos.
A situação no Sudão é gravíssima, e mundo não fala sobre isso. O Sudão é completamente esquecido da narrativa. O filme que a gente está trazendo, Sudão, lembre de nós, inclusive é de uma diretora que não é sudanesa. Ela é uma diretora tunisiana, do norte da África. E ela vai para o Sudão e começa a filmar justamente um momento de manifestações de jovens sudaneses. Boa parte desses manifestantes, eu diria que é grande centralidade, é de mulheres jovens sudanesas, que estão nas ruas, lutando pelo fim do regime ditatorial e militar. O que a gente vê hoje no Sudão é muito resultado do que acontece depois dessas manifestações que estão no filme, uma resposta muito cruel e violenta a essas pessoas e a esses jovens manifestantes. as diretoras árabes também circulam em outros territórios.