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Eu ia escrever sobre a venda de direitos de propriedade intelectual pela banda Kiss, a legendária banda de rock dos anos 1970, cujos membros agora não são mais donos nem das músicas que escreveram, nem da maquiagem que marcou época, nem da própria imagem quando tocavam em shows lotados, nem de qualquer coisa que se venha a produzir em seu nome. Eu ia escrever esta coluna sobre a distopia de um grupo de seres humanos perderem (seja qual valor foi pago) o direito às suas próprias imagens e criações e de uma empresa – nesse caso, a suíça Pophouse Entertainment, que gerencia projetos culturais e criou, por exemplo, a versão em holograma da banda Abba – controlar essa imagem e suas projeções futuras. 

Ia escrever sobre as implicações de que uma venda dessas seja possível graças à compra da propriedade intelectual e dos direitos de imagens e de “semelhança”, invenções que na era da inteligência artificial (IA) adquirem contornos sinistros e impensáveis. E ia escrever, de maneira estruturada e argumentada, sobre como, hoje em dia, uma empresa como a Pophouse Entertainment pode simplesmente recriar, através de IA, as músicas do Kiss indefinidamente – pode, inclusive, treinar uma ferramenta de IA apenas para reescrever novas músicas do Kiss, que serão representadas por uma versão digital do Kiss em videoclipe, que tanto o vídeo como a canção serão de uma qualidade indistinguível das canções do Kiss (que não eram lá grandes coisas) e que o resultado disso será que o Kiss, a banda, jamais vai envelhecer ou morrer ou, então, jamais vai deixar de realizar espetáculos para girar a roda do capitalismo, ad infinitum, ad nauseam

Eu ia escrever sobre isso. 

Mas eu me sentiria uma farsante, escrevendo sobre cenários calculados no futuro, estando eu no monte das trincheiras em Tejucupapo, no município de Goiana, nordeste de Pernambuco, diante de trincheiras que foram recuperadas pelo Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e ainda estão ali, marcando o local onde mulheres do pequeno vilarejo ajudaram a impedir a passagem de um grupo de 600 holandeses que queriam tomar alimentos para resistir ao cerco dos portugueses a Recife, em 1646. Estava lá com a equipe da Marco Zero, premiado site independente do Nordeste, presenciando uma cena incrível. 

Era uma tarde chuvosa e enlameada de domingo, num morro verdejante com pouquíssimo acesso à internet (nem Claro nem Tim); as barraquinhas que vendiam salgadinhos mequetrefes e cachos de pitomba, um fruto silvestre e azedinho da região, não conseguiam aceitar Pix pela internet recalcitrante, nem havia livestreaming de influenciadores possível nem haveria uma pletora de imagens registrada na rede mundial. E a vida acontecia mesmo assim.     

Há 30 anos, uma obstinada senhora, Luzia Maria, escreveu e dirigiu um espetáculo a céu aberto recriando a batalha em tons épicos, e desde então ela é representada todos os anos por mais de 200 moradores de Tejucupapo, diante de uma plateia de 1.500 pessoas vindas da vizinhança – famílias, roupas coloridas, sorrisos, gritaria – uns pequenos punhados de Recife, com seus óculos coloridos e camisas estilizadas, e só nós de forasteiros. Luzia preside a Associação Cultural Heroínas de Tejucupapo, responsável pela encenação a céu aberto.  

Com um atraso de duas horas, causado porque Luzia queria esperar a chegada do prefeito, a batalha é encenada como uma grande dança, onde as mulheres aparecem com vestidos longos e monocromáticos, vermelho, verde, azul, rosa, carregando cestas de frutas e farinha, de mãos dadas com meninos vestidos apenas com calça curta e branca, descalços, e através das furiosas caixas sonoras no último volume uma narração épica (feita pela própria autora) vai contando como era a tediosa (mas pintada de maneira engrandecedora) vida das mulheres de Tejucupapo, que faziam seus deveres, cantavam cantigas, até que, no dia da invasão, foram incitadas pelo (valente) major de milícias Agostinho Nunes a ferver água e temperar com pimenta para jogar nos olhos dos invasores.

A espera foi de duas horas e meia, mas a performance em si dura por volta de meia hora. A plateia está em êxtase, grita a cada “holandês”, de calças negras, casaco laranja e uns capacetes de bicicleta revestidos com purpurina dourada que cai no fosso da trincheira. 

“Se esses holandeses voltarem, eu atiro neles” – diz um dos atores, vestido com um gibão marrom

“Vivaaaa” – grita o público.          

A história contada na peça, é claro, foi bastante arredondada. Seu significado é dizer que nascia ali o Brasil independente, o que é um papo furado: o Nordeste se livrou dos holandeses apenas para voltar a ser católico, obscurantista e português (escravocratas todos eram). Mas isso é o que menos importa. Para mim, importa que numa cidadezinha de 80 mil habitantes essa senhora tenha conseguido criar uma tradição que atrai milhares de pernambucanos todos os meses de abril, e que tenha feito toda essa gente esperar nas desconfortáveis arquibancadas até a chegada do prefeito, a quem, em vez de pedir uma salva de palmas, chamou ao microfone para entregar-lhe uma placa de homenagem para depois pressionar: 

– Temos três demandas – disse.

Então seu vice-presidente, um rapaz jovem, listou-as ali, bem detalhadas, e depois Luzia ainda cobrou: 

– Queremos ouvir sua resposta. 

Palmas da plateia.  

Por que estou compartilhando isso aqui, nesta coluna sobre o bravo mundo novo da tecnologia? Porque, embora sejam realidade as novas fronteiras virtuais do ultracapitalismo digital, e embora tenhamos, sim, que refletir sobre as implicações desses novos mundos que estão sendo criados, onde uma banda de rock da minha infância pode viver para sempre, ainda estamos em um mundo simultaneamente analógico, onde um grupo de senhoras, senhores e crianças de uma cidadezinha no interior de Pernambuco encenam, bem à maneira oposta das criações de IA, uma peça e conseguem levar mais de 1.500 pessoas num domingo chuvoso para vê-las, com parca internet, sem luz quase, com pouco sinal de telefonia, e a vida segue acontecendo, também, fora da rede, ainda tocada por pessoas com seus medos e seus vícios e suas belezas.  

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Direitos Humanos | inteligência artificial | Português | tecnologia