Por trás dos muros de um dos mais importantes complexos militares do Brasil, existe uma história oculta a ser contada.

Da transformação do exército brasileiro em um “entreposto ou intermediário meramente formal para a operacionalização de desvio”.

De corrupção, desvio de dinheiro público, benefícios através da Lei Rouanet, tráfico de influência, personagens envolvidos com denúncias de organização criminosa e fraudes. No comando de tudo, fardas poderosas.

Fortaleza de São João, entre os Morros Cara de Cão e Pão de Açúcar, atual bairro da Urca, zona sul do Rio de Janeiro, onde, na história oficial, Estácio de Sá fundou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em 1º de março de 1565.

Sede da Escola de Educação Física do Exército (EsEFEx), onde foi forjada a preparação física daquele que é considerado por tantos como o maior time da história do futebol, a seleção de 70. Ainda no complexo da Fortaleza São João, estão o Centro de Capacitação Física do Exército (CCFEx), a Comissão de Desportos do Exército (CDE), o Instituto de Capacitação Física do Exército (IPCFEx), e a Bateria Estácio de Sá da Fortaleza de São João.

No interior do sítio histórico, também está a instituição responsável por formular o pensamento e a ideologia daqueles que irão ocupar os mais altos cargos das forças armadas no país. Em seu lema, a Escola Superior de Guerra (ESG) não faz por menos: “Nessa casa, estuda-se o destino do Brasil”. Ali se realizam os altos estudos de política, defesa e estratégia das armas brasileiras. Nos mandamentos da ESG, estão destacados o que chamam de “os nossos valores”. Entre eles, o patriotismo, o civismo, o orgulho de ser ESG. E a ética.

Essa é a face conhecida daquela caserna.

A senha que joga luz para a parte obscura que se esconde intramuros vem de um registro que abre as portas para um longo fio da meada, uma teia onde os dados, nomes e CNPJs irão desembocar no coração verde oliva da Fortaleza São João. Um documento singular:

Em duas páginas, o dono de uma empresa privada apresenta proposta de prestação de serviço para uma organização não governamental. O plano de consultoria (ver documento abaixo) consta da documentação pública da Secretaria de Esporte e Lazer (SEEL), do governo do estado do Rio de Janeiro, para análise sobre beneficiários da Lei Estadual de Incentivo ao Esporte.  

O nome da empresa que apresentou a proposta:

 RR Consultoria, Assessoria e Intermediação de Negócios.

O nome da organização que recebeu:

Associação da Fortaleza de São João (AFSJ).

Ao fim do documento, o nome da RR Consultoria e seu responsável: Luiz Alberto Alves Rolla. Um coronel do exército na reserva.

Um pouco acima, está a assinatura à mão dele, sobre um carimbo. No entanto, nesse carimbo, a informação inusitada: “Luiz Alberto Alves Rolla – Presidente da Associação da Fortaleza São João”.

Foi assim: no dia 3 de outubro de 2023, a RR Consultoria, Assessoria e Intermediação de Negócios enviou proposta de “consultoria e assessoria” para a Associação da Fortaleza de São João, relativo ao “Projeto Movimente Mais Beach Tennis II”, organizado pela entidade. No valor de R$ 508 mil reais. A proposta onde o vendedor é o mesmo que o comprador foi a vencedora da licitação, tendo disputado com outras duas empresas, que apresentaram orçamentos superiores.

Tradução: o empresário que propõe vender consultoria e assessoria para a Associação da Fortaleza São João também aparece como o presidente da mesma. Em resumo: uma pessoa só nas duas diferentes pontas assinando o mesmo negócio. Um convênio envolvendo dinheiro público, já que a AFSJ é uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), que, em resumo breve, é uma ONG criada pela iniciativa privada que obtém, através do ministério da justiça, um status que permite celebrar convênios e parcerias com o poder público e acesso a doações realizadas por empresas que podem ser descontadas no imposto de renda. Com exigências legais de prestação de contas referente a todo o dinheiro público recebido do estado.

No caso em questão, dois artigos da Lei Nº 9.790/1999, que dispões sobre as OSCIPs estão desrespeitados: o que determina “a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e da eficiência” e sobre “a adoção de práticas de gestão administrativa, necessárias e suficientes a coibir a obtenção, de forma individual ou coletiva, de benefícios ou vantagens pessoais, em decorrência da participação no respectivo processo decisório”.

Em 8 de agosto de 2023, a AFSJ foi penalizada pelo ministério da justiça e perdeu a qualificação de OSCIP. A reportagem entrou com Lei de Acesso à Informação (LAI) para saber as razões mas teve o pedido negado. A assessoria do ministério também não respondeu. Em 17 de outubro do mesmo ano, depois de entrar com recurso, a organização retomou o selo de OSCIP. 

EMPRESA DE CORONEL BENEFICIADA E ASSOCIAÇÃO TEM O MESMO ENDEREÇO

As ligações entre a AFSJ e a RR Consultoria não ficam apenas no mesmo nome representando os dois. Os endereços conectam ambas.

Atualmente, a RR Consultoria está, de acordo com os dados da Receita Federal, em um prédio da Avenida Rio Branco, centro do Rio, na sala 1705. Ao lado, na 1706, está a Associação da Fortaleza de São João.

Há uma outra “coincidência”, não menos curiosa nos endereços: A sala 1705, da RR Consultoria, é também do Clube Militar. Ou seja, no mesmo grupo de salas estão RR Consultoria, Associação da Fortaleza de São João e Clube Militar. 

Antes da RR Consultoria e a Associação estarem lado a lado no centro, estavam na mesma sala no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, como mostram dois registros: a conta de luz da RR Consultoria e uma certidão de situação fiscal de ISS da prefeitura do Rio consultada pela reportagem. Que apontam para ambas com sede no início da rua Voluntários da Pátria, numa mesma loja. A mudança para o centro da cidade foi em 31 de julho de 2019.

UM PROJETO DE R$ 4 MILHÕES

Aprovado pelo governo estadual do Rio de Janeiro em 21 de agosto de 2023, com prazo para captação entre 3 de novembro de 2023 até o fim do projeto, em 30 de maio de 2024, o “Movimente Mais Beach Tennis II” acima citado, a ser realizado na praia do Anil, em Angra dos Reis (RJ), recebeu autorização para obtenção de R$ 3.537.281,95 (três milhões, quinhentos e trinta e sete mil, duzentos e oitenta e um mil reais e noventa e cinco centavos) em 28 de agosto. Sendo reajustado em 23 de novembro para R$ 3.944.136,38.

CUSTO TRIPLICADO: VALOR DA 1ª EDIÇÃO DO PROJETO PULOU EM 237,53% PARA A 2ª

Um ano antes, foi realizada a primeira edição do projeto, então o “Movimente Mais Beach Tennis”, na mesma praia do Anil, em Angra dos Reis. O início da captação foi em 1º de dezembro de 2021, com término em 30 de março de 2022. Na segunda versão, o número de inscrições previstas para participantes era de 900 pessoas, enquanto o primeiro tinha 1.200.  Mesmo assim, entre o primeiro e segundo, houve um aumento no preço solicitado e autorizado para a lei de incentivo de 237,53%. O triplo do custo, exatamente 3,37 vezes a mais. Pulando de R$ 1.171.231,00 (um milhão, cento e setenta e um mil, duzentos e trinta e um reais) para os R$ 3.944.136,38 de 2023.

Se a variação de tamanho entre uma edição e outra não foi significativa, alguns itens que respondem por esse aumento de 237,53% no valor chamam a atenção.

Como por exemplo, no item que está discriminado como “despesas de pessoal”, o custo passou dos R$ 438.750,00 de 2022 para R$ 991.200,00 no ano seguinte. Mais do que o dobro no item, 2,26 vezes, 126,79% só nesse item. Outros itens, como “produção” e “taxa de agenciamento, saltaram significativamente. No caso de “produção”, de R$475.481,00 para R$ 1.430.421,67. E, em um ano, a taxa de agenciamento pulou de R$ 100.000,00 para o dobro, R$ 200.000,00.

Embora o coronel Rolla apareça como presidente da AFSJ no carimbo do documento da RR Consultoria de 2023, naquele momento ele tinha deixado o posto na entidade. Fora da presidência, o coronel Rolla ainda tem voz forte sobre a AFSJ: dos 16 sócios da associação com direito a voto, além do próprio voto, o coronel Rolla tem ascendência em mais 2 eleitores: os próprios filhos. O coronel ocupa a presidência de honra.

CORONEL ENVOLVIDO COM O GENERAL BRAGA NETTO NO ESCÂNDALO DA COMPRA DOS COLETES NETTO É O ATUAL PRESIDENTE DA AFSJ

Dois anos antes, em 31 de agosto de 2021, o coronel Robson Queiroz Mota foi escolhido presidente em assembleia da AFSJ para mandato ainda vigente (1º de setembro de 2021 até 31/8/2025). Além da nova diretoria, foram eleitos os conselhos: fiscal e administrativo.

Na reserva desde 2002, o coronel Robson Queiroz Mota passou por vários postos de comando no exército, além de ter sido instrutor da Escola de Comando e Estado-Maior. É originário da turma de 1978 da Aman, junto com o general Walter Braga Netto, ministro da Casa Civil e da Defesa no governo Bolsonaro e candidato à vice-presidência, derrotado nas eleições de 2022.

A intimidade entre o presidente da AFSJ e o general Braga Netto ligou-os em escândalo na “Operação Perfídia”, da Polícia Federal, realizada em agosto de 2023, e que apura os crimes de “patrocínio de contratação indevida, frustração do caráter competitivo da licitação, dispensa ilegal de licitação, corrupção ativa e passiva e organização criminosa”.

A operação da PF revelou ao Brasil o superfaturamento em contrato firmado entre a empresa americana CTU Security e o governo brasileiro, durante a presidência de Michel Temer, para aquisição de 9.360 coletes balísticos para a polícia civil através do Gabinete de Intervenção Federal do Rio de Janeiro (GIFRJ).

Um superfaturamento que iria gerar, caso o contrato viesse a se concretizar, um gasto irregular de R$ 4.640.159,40 (quatro milhões, seiscentos e quarenta mil, cento e cinqüenta e nove reais e quarenta centavos).

RESPONSÁVEL PELA OPERAÇÃO FINANCEIRA DO GABINETE DE INTERVENÇÃO

O general Braga Netto era o interventor federal, e o general Sérgio José Pereira foi nomeado chefe do gabinete e secretário da intervenção federal. Já o coronel Robson Queiroz era o assessor deste último e intendente do gabinete, ou seja, quem organiza as compras, responde pelo abastecimento em organizações militares e pela operação de orçamento e execução de todos os serviços financeiros.

Um acaso, e, pode se dizer, um azar para eles, jogou os dois militares braços-direitos de Braga Netto no olho do furacão. A descoberta foi efeito colateral de uma investigação do FBI sobre a participação da CTU Security por fornecimento de logística no asassinato do presidente do Haiti, Jovenal Moise, em 7 de julho de 2021.

A investigação americana descobriu que a CTU Security exportou ilegalmente coletes balísticos dos EUA para o Haiti, utilizados no crime. O efeito colateral da análise dos sigilos telefônicos e correspondência dos executivos da CTU foi descobrir que o Brasil, durante o governo Michel Temer, através do gabinete comandado pelo general Braga Netto, havia também realizado a contratação de coletes acima do preço com a CTU.

Numa das várias pontas reveladas pela investigação, foi revelado que o coronel Queiroz, ainda no cargo do gabinete de intervenção, recebeu R$ 25 mil através da própria empresa, a RQM Consultoria, para fazer lobby pela compra dos coletes superfaturados.

MESMA TURMA DA AMAN

Em um dos áudios interceptados pela PF na investigação da “Operação Perfídia”, um militar envolvido no episódio explica assim a um comparsa a contratação do coronel Queiroz para fazer o lobby na compra dos coletes superfaturados: “Queiroz, Braga Netto e Sérgio (José Pereira, general do Exército) são da turma de 78, são amigos, tanto é que General Braga Netto foi nomeado interventor no Rio, quem foi o chefe de gabinete dele? General Sérgio. E quem era o assessor do General Sérgio? Coronel Queiroz. O Queiroz é o intendente do negócio, o cara que organiza as compras, o que faz as operações de orçamento, entendeu?”.

A PF resumiu assim a participação do atual presidente da AFSJ no escândalo dos coletes balísticos superfaturados:

“O objetivo da contratação do general Assis e do coronel Queiroz nunca foi a eventual expertise na atividade de consultoria de cada um, mas sim no poder de influência para que algum ato seja praticado por servidor público no interesse da organização criminosa”.

PAGAMENTO AO CORONEL FOI VIA DOLEIRO ENVOLVIDO EM TRÁFICO DE COCAÍNA NOS AVIÕES DA FAB

O pagamento para o coronel Queiroz foi feito através do doleiro Márcio Moufarrege, o Macaco, que também é acusado de participar do esquema de remessas de cocaína para a Europa dentro de aviões da Força Aérea Brasileira. Em 9 de fevereiro de 2022, as autoridades americanas comunicaram aos seus pares brasileiros sobre a investigação dos coletes e a participação dos brasileiros. A compra já tinha sido suspensa em setembro de 2019, sem nenhum colete entregue, por outra razão: suspeita de falsificação no contrato.

Mesmo após o episódio dos coletes se tornar público, o coronel Queiroz se manteve na presidência da Associação da Fortaleza de São João.

“ENTREPOSTO PARA OPERACIONALIZAÇÃO DE DESVIO”: AÇÃO FALA EM LIGAÇÕES ENTRE AFSJ E EXÉRCITO EM DESVIO DE 500 TONELADAS DE CHUMBO

É numa ação de improbidade administrativa e enriquecimento ilícito, de autoria do Ministério Público Federal, que transita na justiça do Rio de Janeiro, ainda sem trânsito em julgado, que a atuação conjunta e as ligações muito estreitas entre a Associação da Fortaleza de São João e o exército brasileiro ficam expostas.

O episódio tem origem em 2009.

Nos dias 10 e 22 de julho daquele ano, Arnaldo Alves da Costa Neto, então comandante da Escola de Instrução Especializada do Exército Brasileiro (EsIE), enviou dois ofícios para a Receita Federal, com o requerimento de doação de 499,71 toneladas de chumbo que estavam como mercadoria apreendida na instituição. É um procedimento usual realizado pela receita e que define o destino de mercadorias que foram apreendidas em decorrência de irregularidades, como contrabando, descaminho, sonegação fiscal, entre outras infrações.

Através do “Ato de Destinação de Mercadoria (ADM)” 455/2009, a Receita Federal destinou as 499,71 toneladas de chumbo para o Ministério da Defesa, com destino a EsIE.

“O produto químico (chumbo) a ser doado ficará sob a guarda e controle da Companhia de Defesa Química, Biológica e Nuclear, do Exército Brasileiro, aquartelada nesta Escola Militar”. O exército como entreposto, de acordo com o MPF, e o valor obtido com a venda da mercadoria ficando para organização privada, a AFSJ.

As ligações do exército com a AFSJ vão ainda além ter servido de depósito para a AFSJ. Historicamente, as partes estão ligadas umbilicalmente. A primeira sede da AFFSJ foi dentro das instalações da Fortaleza São João (foto abaixo). Além de todas as ligações entre dirigentes da AFSJ e o exército. Apesar de todos os vínculos, a instituição militar, através de sua assessoria de comunicação, afirmou que “a Associação da Fortaleza de São João não é vinculada ao Exército”. (ver íntegra da nota ao fim da reportagem em “Outro Lado”.

A primeira sede da AFSJ, dentro do complexo militar da Fortaleza São João

O MPF ressaltou ainda que o coronel Rolla, mesmo já estando na reserva há dois anos, desde 31 de dezembro de 2007 e representando uma instituição privada, teve o aval do comandante da EsIE, Arnaldo Alves da Costa Neto, para ser o responsável pela transação.

E utilizando a condição de “coronel”, como afirma a denúncia: “Luiz Alberto Alves Rolla foi autorizado a retirar o produto doado ao Exército, tendo recebido as toneladas de chumbo doadas pela Receita Federal, na condição de Coronel, Superintendente da ACSH – Fortaleza de São João (conforme autorização do Sr. Arnaldo Alves da Costa Neto – Comandante da Escola de Instrução Especializada)”.

O Termo de Parceria 0900900, entre o exército e a Associação da Fortaleza de São João, garantiu a gestão administrativa e a logística de retirada do material para a AFSJ. A verba obtida com a venda do chumbo, de acordo com o pedido formalizado pelo exército, teria como destinação ser aplicada em proveito de instalações, atividades militares e projetos esportivos relacionados aos 5º Jogos Mundiais Militares, realizados em 2011, no Rio de Janeiro.

De acordo com a denúncia do MPF, a licitação para a compra do chumbo foi divulgada apenas no site da AFSJ, tornando-se “questionável”. Afirma ainda que a proposta vencedora do certame, em 13 de agosto de 2009, foi de R$ 817.307,47 (atuais R$ 2.250.057,60, corrigidos pelo IGP-M), mas apenas R$ 807.800,00 (atuais R$ 2.223.883,42) teriam ido para a conta da associação.

O MPF afirma ainda que a associação não comprovou a utilização dos recursos para as finalidades previstas no termo de parceria, e teria apresentado “três versões diferentes sobre a aplicação da verba”.

São réus na ação, além da própria Associação da Fortaleza de São João, o coronel Luiz Alberto Alves Rolla, então superintendente da AFSJ e responsável pelas movimentações da entidade no episódio da doação de chumbo e ainda um então funcionário da receita federal, Cláudio José dos Santos Puntar, que, de acordo com a peça de denúncia, agia em conluio com o coronel Rolla. Ambos teriam agido para desviar os recursos da venda das 499,71 toneladas de chumbo, acusados de peculato.

Mesmo em meio a denúncias amplamente conhecidas na caserna, a AFSJ e o coronel Rolla seguiram com prestígio e trânsito no poder. Portas abertas em ministérios e palácios. Como em 4 de junho de 2020, quando o militar foi recebido, na condição de presidente da AFSJ, às 16h, para audiência com o vice-presidente, general Hamilton Mourão.

A auditoria nº 006-2019, realizada pelo Centro de Controle Interno do Exército (CCIEx), a qual a Agência Sportlight de Jornalismo teve acesso, discorre através de laudo pericial,  sobre “supostas irregularidades envolvendo a doação de materiais pela Receita Federal”.

Ao longo de 28 páginas, despesas e receitas da AFSJ são analisadas.

Ao fim, em relação ao episódio periciado, das movimentações financeiras a partir do obtido com a doação do chumbo, a auditoria conclui ter existido um dano ao erário no valor de R$ 235.427,22 (em valores da época, atuais R$ 648.271,71 corrigidos pelo IGP-M).

Uma equação assim formada: valor da venda de chumbo: R$ 807.800,00; valor comprovado de despesas pela AFSJ: R$ 650.037,55; despesas não consideradas: R$ 113.963,57; despesas não mencionadas em perícias: R$ 36.298,80.

AUDITORIA DO EXÉRCITO CONFIRMA DANO AO ERÁRIO MAS IGNORA IRREGULARIDADES DA PRESTAÇÃO DE CONTA DA AFSJ

Examinando os dados da auditoria realizada pelo exército, a reportagem anotou que a perícia não observou algumas impropriedades cometidas pela AFSJ na prestação de contas sobre o montante arrecadado a partir da venda das toneladas de chumbo, sendo omissa quanto a notórios conflitos de interesse cometidos pelos militares dirigentes da entidade.

Um exemplo é no item relativo a “despesas necessárias ao funcionamento da associação”, que eram abatidas na verba oriunda da venda do chumbo.

O aluguel, condomínio e IPTU da ex-sede da AFSJ estão abatidos nas despesas jogados na prestação de contas. No total, aparecem três salas, todas na rua Voluntários da Pátria 1 sala 22. No entanto, como os documentos obtidos pela Agência Sportlight de Jornalismo e já exibidos no início da reportagem mostram, até 2019, esse endereço abrigava a AFSJ mas também a RR Consultoria, empresa do coronel Rolla, como está demonstrado. Já uma certidão fiscal da prefeitura mostra o mesmo endereço como sendo da AFSJ. Assim, a verba pública financiava gastos da empresa do coronel.

Quadro da auditoria nº 006-2019 do exército

Entre aluguel, condomínio e IPTU da sala da empresa do coronel Rolla, o contribuinte brasileiro pagou R$ 19.422,27 entre abril de 2009 e março de 2011, período auditado. Cerca de R$ 53.703,33 atuais, corrigidos pelo IGP-M.

DOCUMENTO MOSTRA CENTENAS DE DOAÇÕES ENTRE RECEITA E AFSJ E ATÉ SANDÁLIAS PARA ADULTOS

Interrompido com as investigações sobre irregularidades, o fluxo de doações da Receita Federal para a AFSJ pode ter sido um esquema muito mais amplo, como demonstram os documentos obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação.

Durante dois anos, exatamente entre 26 de setembro de 2008 e 13 de agosto de 2010, a Receita Federal realizou, via “Ato de Destinação de Mercadoria”, sete doações para a AFSJ. Em 2010, essa relação se interrompe e, de lá para cá, não houve mais doações. O funcionário da Receita Federal que fazia a ponte com a AFSJ é um dos réus da denúncia do MPF.

Nos documentos, podem ser vistos durante esse período que 93 computadores, descritos como “notebooks” ou “laptops” foram entregues para a associação dos militares. Copiadoras, com valor então de R$ 27 mil, diversas peças e equipamentos de computadores, como mouses e teclados, e até a inusitada doação de “500 sandálias de plástico para adultos”, em 6 de julho de 2010. No site da AFSJ não há prestação de contas quanto a essas doações no períodos. A entidade não respondeu as questões enviadas pela reportagem.

CORONEL ROLLA APRESENTOU PROJETOS PARA OS JOGOS MILITARES EM NOME DA AFSJ SENDO ORGANIZADOR DA COMPETIÇÃO

Ainda em relação a destinação da verba obtida pela AFSJ com o chumbo, ser destinada para a execução dos Jogos Mundiais Militares de 2011, há um outro conflito de interesses: o coronel Rolla, além de responsável pela AFSJ, também era também o “organizador” dos Jogos Mundiais Militares. Mais uma vez estava nas duas pontas do mesmo negócio envolvendo dinheiro público. Na condição de “organizador dos jogos”, representou a organização da competição e participou de diversas reuniões para tratar sobre projetos que eram da associação, como em reunião no ministério do esporte no dia 15 de outubro de 2009, ocasião em que, na condição de “organizador dos Jogos Mundiais Militares” apresentou seis projetos, para 20 modalidades esportivas, em nome da Associação da Fortaleza de São João.

Os Jogos Mundiais Militares de 2011 tiveram um custo estimado na ocasião em R$ 1,27 bilhão. Diversas investigações de superfaturamento nos jogos foram realizadas. O Tribunal de Contas da União (TCU) confirmou algumas dessas irregularidades, e classificou alguns convênios assinados “em desacordo com os preceitos legais”.

VIVENDO DE LEI ROUANET: MAIOR FONTE DE ONG DE MILITARES VEM DO INSTRUMENTO VILÃO DA EXTREMA-DIREITA

Transformada em uma das maiores vilãs da extrema-direita juntamente com as ONGs, acusada de ser instrumento de meio de vida fácil para, segundo tal discurso corrente, “vagabundos”, a chamada “Lei Rouanet”, na verdade “Lei Federal de Incentivo à Cultura” (Lei nº 8.313), é o grande instrumento para obtenção de recursos e financiamento da associação comandada por oficiais do exército.

Como mostra o quadro abaixo, a Associação da Fortaleza São João já entrou, ao longo dos anos, com 20 pedidos no Pronac, que vem a ser o “Programa Nacional de Apoio à Cultura”, um dos instrumentos de gestão da Lei Federal de Incentivo à Cultura, mais conhecida como Lei Rouanet. O objetivo do Pronac é incentivar e viabilizar projetos culturais por meio da captação de recursos junto a empresas e pessoas físicas, que podem deduzir parte do imposto de renda devido ao apoiar iniciativas culturais aprovadas pelo programa.

Além dos vinte projetos via Lei Rouanet, os militares tem também no portfólio mais seis projetos via Lei Estadual de Incentivo ao Esporte Lei nº 8.266, no Rio de Janeiro, e outros seis de Lei de Incentivo ao Esporte (nº 11.438), junto ao ministério do esporte. Num total de 32 projetos via leis de incentivo.

OUTRO LADO:

Associação da Fortaleza São João:

A reportagem enviou pedido de “outro lado” para a AFSJ e não obteve resposta.

Coronel Rolla:

No início do dia 18 de março, a reportagem enviou um pedido de resposta para o Coronel Rolla. No dia seguinte, o coronel enviou e-mail comunicando que estava “elaborando as respostas dos questionamentos” e iria enviar “o quanto antes”. A reportagem voltou a solicitar o envio. O coronel Rolla não enviou e não respondeu mais a comunicação da reportagem, mesmo diante do prazo aumentado por mais dez dias.

Embora o militar não tenha enviado resposta, a reportagem reproduz aqui um trecho da defesa do Coronel Rolla na ação que corre na justiça, onde nega as denúncias do MPF. A defesa do Coronel Rolla nega as acusações do Ministério Público Federal, afirmando ser desprovida de qualquer fundamento, e cita a auditoria como prova.

“Como restou demonstrado na peça de defesa prévia, a acusação está desprovida de qualquer fundamento probatório idôneo, tendo sido apresentados como evidência documentos e depoimentos sem conteúdo que indique ilegalidade das operações ora questionadas, apoiando-se a narrativa acusatória primordialmente em conjecturas subjetivas. Ainda, não apenas a acusação de dano ao erário é constituída por alegações sem fundamentação, como o parquet ignora existência de parecer contábil emitido pela auditoria interna do exército (Parecer de Auditoria no 006 – 2019/SAGEF/CCIE), já anexado à defesa prévia, extenso documento elaborado administrativamente que afasta qualquer dúvida sobre a probidade dos demandados e da destinação de verbas regularmente efetuada”.

Coronel Robson Queiroz:

A reportagem enviou pedido de “outro lado” para o coronel Robson Queiroz e não obteve resposta.

Exército Brasileiro:

O exército brasileiro enviou, através do seu Centro de Comunicação Social (CCOMSEx), a resposta a seguir para as questões enviadas pela reportagem:

“Atendendo à sua solicitação formulada por meio de mensagem eletrônica, o Centro de Comunicação Social do Exército informa que a Associação da Fortaleza de São João não é vinculada ao Exército. Quanto às condutas atribuídas aos oficiais citados, trata-se de assunto da esfera judicial. Portanto, não há o que deva ser comentado pelo Exército”.

Cláudio José dos Santos Puntar:

Assim como a justiça, que não obteve êxito em localizar e notificar o ex-funcionário da Receita Federal, também réu, a reportagem não conseguiu encontrá-lo. Em caso de contato, esse espaço será atualizado.

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