Oito meses.

240 dias.

Entre maio de 2022 e janeiro de 2023.

Foi o tempo que o Banco Central levou entre a identificação do maior erro de cálculo dos dados sobre o fluxo cambial (o volume de dólares que entram e saem do país) de todos os tempos e a comunicação para a nação. É o que mostram os documentos obtidos pela reportagem junto ao banco através da Lei de Acesso à Informação (LAI).

O cenário e o pano de fundo do período em que ocorreram o equívoco bilionário e o silêncio: a campanha da eleição presidencial mais acirrada da história de um país.

O maior beneficiado com o lapso temporal que deixou a falha debaixo do tapete, e depois de já identificada a existência de um grave problema ainda demorou 8 meses para ser solucionada: o então presidente Jair Bolsonaro, que surfou com propaganda fake sobre o sucesso na balança do câmbio entre importação e exportação.

O protagonista: Roberto Campos Neto, escolhido e empossado por Bolsonaro em 28 de fevereiro de 2019 para presidir o banco transformado em entidade autônoma em fevereiro de 2021.

FALTAVAM 72 HORAS PARA O GOVERNO BOLSONARO ACABAR QUANDO A INFORMAÇÃO DO ERRO FOI COMUNICADA ENTRE AS DIVISÕES DO BANCO

Faltavam 72 horas para o fim do governo Bolsonaro quando, finalmente, a comunicação da existência do erro foi passada adiante entre as repartições da instituição para providências. Na quarta-feira, 28 de dezembro de 2022, o coordenador da Subdivisão de Balanço de Pagamentos (Subap), passou ao chefe da Divisão de Balanço de Pagamento (Dibap), que a compilação da estatística do câmbio contratado estava errada. Passado o réveillon, no dia 3, e já com o Brasil sob nova direção, a comunicação seguiu sua viagem. Do Dibap para o Disap (Departamento de Estatística), daí para o Diretor de Política Econômica (Dipec) e ao Diretor de Política Monetária (Dipom).

Finalmente, em 26 de janeiro do ano presente, uma nota comunicou para a imprensa avisando que o banco faria uma entrevista coletiva. Na pauta: apaga tudo o que se falou ao longo do ano eleitoral. Assim:

O que foi contado em 2022 como uma entrada líquida de US$ 9,574 bilhões de dólares no país no ano eleitoral, era, na verdade, uma saída de US$ 3,233 bilhões.

Com a revisão, o volume contratado de importação em 2021 (de outubro, mês da mudança na metodologia, a dezembro) foi revisto de US$215,4 bilhões para US$217,2 bilhões, acréscimo de US$1,7 bilhão. E em 2022 foi de US$ 250,9 bilhões, e não US$238,1 bilhões. Com isso, o resultado do fluxo cambial teve que ser reduzido em US$ 14,5 bilhões. Desenhando, mais dólares saíram do país do que entraram em 2022, ao contrário do que se pregou e ficou escondido no ano eleitoral.

Foi só em 26 de janeiro de 2023 que o país soube do erro e como se deu o erro. Na véspera, Fernando Alberto Rocha, chefe do departamento de estatística, mandou e-mail de alta prioridade para a presidência e demais diretores, municiando a todos com dados sobre o caso e avisando que os temas ali podiam “reverberar negativamente na imprensa”.

Em breve e acelerado resumo, em 9 de setembro de 2021, a Resolução 137 do banco criou cinco novos códigos cambiais. Alguns dias depois, em 1º de outubro, a nova metodologia começa a vigorar. No entanto, um desses códigos, o 34021, sobre “Aquisição de bens e de serviços – Demais soluções de pagamento digital”, acabou não sendo incluído nas rotinas de compilação da estatística. Relativo ao movimento de câmbio contratado.

Dessa forma, como comunicou o Banco Central, “deixaram de ser considerados nessas estatísticas os pagamentos ao exterior, por aquisição de bens e serviços, mediante solução de pagamento digital relativas a plataformas de comércio eletrônico, subestimando o total de câmbio contratado de importação”. E com o equívoco, “deixaram de ser considerados nessas estatísticas os pagamentos ao exterior, por aquisição de bens e serviços, mediante solução de pagamento digital relativas a plataformas de comércio eletrônico, subestimando o total de câmbio contratado de importação”.

ALTERAÇÃO DO PADRÃO É IDENTIFICADA EM MAIO. UM SEMESTRE INTEIRO PARA SER CORRIGIDA. NORMA INTERNA EXIGE REVISÃO IMEDIATA APÓS ERRO IDENTIFICADO

Já no primeiro mês em vigor, ou seja, outubro de 2021, até abril de 2022, é verificada “alteração inicial  no comportamento do ajuste”, como está nos relatórios do Banco Central. Ou seja, 13 meses antes da comunicação do erro. Em maio de 2022, ou seja, oito meses antes da retratação, que “a alteração do padrão do ajuste tornou-se mais intensa”, de acordo com os relatórios do banco. Mas seguiu sem maior intervenção.

Os relatórios da instituição afirmam que no segundo semestre de 2022 foram revisados de forma mais detalhada as “etapas dos processos de compilação”.

Um semestre inteiro após o alerta de maio foi necessário até que finalmente, a não atualização de um dos filtros fosse identificada.

Documento do próprio Banco Central, obtido via LAI, (ver quadro abaixo) detalha a cronologia desde a instauração da nova metodologia até a comunicação do erro, passando pela identificação, com os oito longos meses entre a instituição se dar conta de uma alteração e a correção. De maio de 2022 até janeiro de 2023. Em um Brasil em ebulição.

Os relatórios mostram que, pela norma de política de revisão de estatísticas do banco, “a revisão deve ser feita tão logo identificado o erro”:

REPRESENTAÇÃO DO MP-TCU FALA EM “ERRO BILIONÁRIO EM MEIO A ACIRRADA DISPUTA ELEITORAL”. UM ERRO INÉDITO

No dia 30 de janeiro de 2023, quatro dias após o erro vir a público, o subprocurador do Ministério Público Junto ao Tribunal de Contas da União, Lucas Rocha Furtado, ofereceu representação ao tribunal. Na peça, o subprocurador citou a preocupação com o fato do erro ser inédito, coincidindo com o acirrado período eleitoral. Citando que, nesse contexto, poder existir a possibilidade de alguém ter sido beneficiado com o erro:

“Ademais, apesar de minimizado pelo Banco Central, o erro em questão foi bilionário, ocorrido em meio a uma acirrada disputa eleitoral e adiciona incertezas e desconfianças ao mercado brasileiro, que já passa por um momento difícil. Nesse contexto, acredito que haja motivos suficientes para proceder a análise da possibilidade de que alguém possa ter se beneficiado do “erro”, que não ocorreu em anos anteriores. Assim, entendo imprescindível atuação desse Tribunal para a identificar e punir possíveis responsáveis, uma vez que deve ser investigada a possibilidade de que o “erro” da entidade independente possa ter sido na verdade, propositalmente causado por dirigentes que podem ganhar muito com ele”.

O erro se deu paralelo ao auge das concessões eleitoreiras de Jair Bolsonaro.

No dia 14 de julho, Bolsonaro foi ao congresso acompanhar a promulgação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que ficou conhecida como a “PEC Eleitoral”, que autorizava o governo a gastar R$ 41,2 bilhões para conceder benefícios, burlando a regra que veta medida atos dessa natureza em período eleitoral. A pec instituía um estado de emergência no país, burlando assim a lei e as regras fiscais. A medida ampliou benefícios como o Auxílio Brasil e criou outros como o “Pix Caminhoneiro”, em um total de gastos liberados 41,2 bilhões à revelia do teto.

Nesse contexto todo, de estado de emergência, pec eleitoral, benesses de ocasião, erro do Banco Central passando ao país um falso superávit no fluxo cambial entre importação e exportação, Luiz Inácio Lula da Silva tinha PT tinha 58 x 36 pontos no Datafolha contra Jair Bolsonaro em maio. Na última pesquisa, 29 de outubro, véspera da eleição, o Datafolha marcava 49 x 44.

Em 24 de maio, quatro meses depois da representação do subprocurador Lucas Rocha Furtado, o TCU arquivou o processo. O relator foi o ministro do órgão de contas, Antonio Anastasia. Político (PSDB e PSD) que teve sua carreira marcada pela oposição ferrenha ao PT, ex-governador de Minas Gerais e ex-senador, onde teve sua passagem marcada por ser o relator da comissão especial do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Escolhido pelo senado para ministro do TCU em dezembro de 2022, Antonio Anastasia foi nomeado ministro por Bolsonaro em janeiro de 2022.

Um economista de renomada consultoria, que preferiu não se identificar, afirmou que, além da questão do calendário eleitoral que se deu o episódio, erros no fluxo cambial, “podem ocasionar valorização excessiva da moeda local e conduzir a uma avaliação incorreta dos riscos econômicos e financeiros enfrentados por um país, deixando-o mais vulnerável a choques econômicos externos, como crises financeiras ou recessões. E ainda pode ter como beneficiários especuladores e traders, que eventualmente podem antecipar a correção do erro podem lucrar com as flutuações no mercado de câmbio”.

Em 25 de abril, com convocação do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), Roberto Campos Neto foi convocado para audiência da CAE (Comissão de Assuntos Econômicos) do senado. A razão da convocação era o erro, mas a sessão foi amena, com pouco tempo focado no episódio e a maior parte sobre outros assuntos da entidade. A rigor, em todos os questionamentos realizados até aqui, se verifica que o foco tem sido no erro técnico em si. Os documentos obtidos indicam que mais grave ainda pode ter sido a cronologia dos acontecimentos. E a eventual coincidência entre o longo silêncio e o calendário eleitoral.

Afinidade: Roberto Campos Neto em lazer com cúpula bolsonarista: Tarcísio de Freitas, Fábio Faria e Ciro Nogueira

OUTRO LADO:

A reportagem enviou a cronologia dos fatos montada a partir dos documentos da LAI e questões para o Banco Central sobre o tema. A terceira pergunta, sobre eventual grave conflito ético na demora, não foi respondida.

1- Qual a razão para tamanha demora em toda revisão do processo, já que entre a identificação das primeiras inconsistências e a efetiva revisão, mais de um ano se passou?

R.: Como se observa nos parágrafos 25 a 27 da anexa Nota Técnica 175/2023-BCB/DSTAT, de 4 de abril de 2023, elaborada para atendimento de demanda do Tribunal de Contas da União (TCU) no processo TC 001.464/2023-0, foi a partir de maio de 2022 que a inconsistência entre os fluxos de contratações cambiais e a variação da posição de câmbio dos bancos tornou-se mais significativa. Essa evidência passou a ser analisada pela equipe técnica responsável até a descoberta da falha operacional, ocorrida no segundo semestre de 2022.

Identificada a falha operacional, a mesma foi corrigida, mediante o refazimento de todo o processo informatizado de apuração estatística. Após a correção dos sistemas de apuração, os dados diários do movimento de câmbio foram inteiramente reprocessados desde 1º de outubro de 2021. O resultado desse reprocessamento foi então comparado com a variação da posição cambial e validado. Após essas medidas, foi elaborada a comunicação do erro – que se caracteriza como uma revisão extraordinária nos termos da Política de Revisão de Estatísticas (disponível em https://www.bcb.gov.br/content/estatisticas/Documents/notas_metodologicas/Politica_de_Revisoes_de_Estatisticas.pdf ) – e definida sua divulgação para a próxima data previamente agendada de publicação das estatísticas do setor externo, durante a qual o Chefe do Departamento de Estatísticas explicou esses fatos durante entrevista coletiva à imprensa.

2– O erro, de proporções imensas, botou o país em risco por diversas situações e o deixou vulnerável por longo período. Além de poder ter beneficiado especuladores e traders. Qual é o balanço deste BACEN sobre o episódio, quais consequências foram identificadas?

R.: Conforme se observa no parágrafo 31 e na figura 10 da referida Nota Técnica 175/2023-BCB/DSTAT, o erro foi equivalente a 0,7% do movimento de câmbio contratado bruto total do período.

A mencionada Nota Técnica 175/2023-BCB/DSTAT transcreve, no seu parágrafo 2, as conclusões da análise técnica do TCU sobre o evento, na qual foi ressaltado, repetidas vezes, a ausência de indícios de irregularidade, de impacto significativo no mercado, de benefícios indevidos ou de prejuízos ao Banco Central, à investidores ou ao país. 

O Acórdão 1.016/2023-TCU-Plenário, de 24 de maio de 2023, acatou essas conclusões da área técnica do TCU e decidiu pela improcedência da representação e pelo arquivamento do processo.

3- Além de todos os problemas acima citados, o período em que o erro persistiu, coincidiu com o governo pelo qual o presidente do Bacen, Roberto Campos Neto, foi nomeado e com o período eleitoral, podendo significar um grave conflito ético. Gostaria que o  Bacen comentasse.

R- O Banco Central não respondeu.

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Sportlight - Oito meses: documentos do Banco Central mostram que erro no fluxo cambial já estava identificado durante período eleitoral mas seguiu debaixo do tapete