O sítio de Reginaldo dos Santos tem um quê de paraíso. É uma terra pequena no Cabo de Santo Agostinho, com menos de um hectare, mas coberta por fruteiras. Tem abacateiro, tem mangueira, tem coco, tem araçá. E um destaque: 40 pés de mangabeiras, algumas muito antigas, entre elas uma enorme árvore com mais de meio século de vida. No verão, a frutinha verde-alaranjada vira fonte de dinheiro extra. Vendida em uma barraquinha na frente de casa, rende de R$ 1 mil a R$ 2 mil reais ao ano.

A esposa de seu Reginaldo, dona Nau, também congela a mangaba e a usa por vários meses para fazer um dudu – ou sacolé – delicioso. Batida com leite, a mangaba não tem rival: o dudu é disputado pelos frequentadores da Vila de Nazaré e da praia de Calhetas. “É uma fruta que as pessoas gostam muito. A gente vende para hotel, para pousada. As pessoas também param o carro para comprar”. A mangaba hoje, é fácil de vender, mas cada vez mais difícil de se encontrar em Pernambuco.

A ideia para esta reportagem surgiu ainda no final do ano passado, quando entrevistamos Marcos Kennedy, que tem uma barraquinha de cachorro quente no centro do Recife há décadas, herdada do pai. Até pouco antes da pandemia, Marcos Kennedy vendia os sanduíches acompanhados de sucos de tamarindo ou de mangaba. Mas foi ficando cada vez mais difícil encontrar a frutinha, até que não achou mais. “A mangaba está em extinção”, nos disse, na época.

O comerciante tinha razão: aqui em Pernambuco a mangaba está desaparecendo. Uma pesquisa da Embrapa publicada em 2018 – ainda a mais completa e mais recente sobre a fruteira – revelou que restava apenas 1,26% da área de mangabeira nativa no estado. As causas para a falta de mangaba são muitas, mas podem ser resumidas em uma só: a ação do homem.

A pesquisa da Embrapa mapeou 15 municípios em Pernambuco e identificou as ameaças que as mangabeiras estão submetidas. Na Região Metropolitana do Recife, as ameaças são o crescimento urbano e a industrialização. Na zona canavieira e nas praias, a monocultura e a intensa atividade turística. O estudo apontou que algumas áreas com mangabeira estão submetidas a mais de um tipo de ameaça, como em Ipojuca, onde há canaviais e um descontrole nas construções.

Há também questões importantes como os incêndios criminosos para “limpar” terrenos. E a perda do vínculo da comunidade com as mangabeiras, que já foram importante fonte de renda. Ali na Vila de Nazaré, Reginaldo é um dos poucos que ainda consegue manter suas mangabeiras em pé, por enquanto. Há dez anos, pessoas dizendo ser do Complexo Industrial de Suape bateram na porta da casa dele. “Disseram que eu tinha que sair daqui, que essas terras eram de Suape. Se eu sair daqui, vão invadir e destruir todas essas fruteiras. Já construíram muitas casas por aqui, onde tudo antes era mangabeira, cajueiro, mangueira. Agora é só construção. Ainda bem que nunca mais voltaram”, conta.

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Há apenas uma espécie de mangabeira, com seis variedades botânicas distribuídas pelo Brasil. As mangabeiras são encontradas do Amapá até o norte do Paraná. A mangabeira do cerrado é de uma variedade bem diferente da que ocupa a costa brasileira. No litoral, a mangabeira se divide em dois locais: os tabuleiros costeiros, platôs de 20 a 50 metros de altura, e as restingas. Também há mangaba no Paraguai, na Bolívia e no Peru. São plantas que gostam de solos arenosos, de calor. Começam a dar frutos somente após cinco ou seis anos de idade.

Só em Pernambuco falta mangaba

Pesquisador da mangaba há mais de 20 anos, o engenheiro agrônomo Josué Francisco da Silva Júnior coordenou o estudo da Embrapa. Ele ressalta que a mangaba está desaparecendo somente aqui em Pernambuco. “A espécie não está em extinção. Porque tem mangaba em todo canto. Não tem lugar sem mangaba. Mas é uma espécie que está em desaparecimento em Pernambuco. Mas se eu for em Sergipe, por exemplo, tem muita muita mangaba, apesar das pressões que também existem lá”, diz.

Foram as pressões econômicas que fizeram com que a mangaba ficasse escassa em Pernambuco. Desde as plantações de cana de açúcar até a construção de condomínios nas praias, passando pela criação de camarões em fazendas e a plantação de cocos. Tudo isso acontece justamente nas áreas onde a mangaba é nativa.

O desaparecimento na natureza não significa que a mangabeira nativa de Pernambuco está perdida. A Embrapa possui um banco genético com mais de três centenas de amostras das plantas. “É difícil você recuperar uma população que foi perdida. Por isso que a gente guarda muitos materiais nos bancos genéticos. Porque é aquela mangaba, daquela regiãozinha ali, que se adapta melhor aquele local. Temos material genético de mangabas que não existem mais na natureza, aqui em Pernambuco”, conta.

Os pesquisadores coletam uma amostra da fruteira e, caso seja solicitado pela população local, no futuro é possível replantar essas mangabeiras, que possuem as mesmas características das que existiam ali. “Recentemente a prefeitura de Aracaju derrubou pés de mangabeira para fazer um conjunto habitacional e a comunidade pediu para a Embrapa fazer a coleta e guardar no banco genético. No futuro, independentemente de qualquer coisa, está guardada lá”, conta.

A importância econômica da mangaba

A Ilha das Cabras é um pequeno vilarejo familiar às margens da PE-51, no caminho para Serrambi, em Ipojuca. No verão, é fácil identificar: vai ter alguém vendendo mangaba na pista. E além de mangaba, manga espada, manga rosa, azeitona preta (também conhecida como jamelão). “A mangaba é muito vendável. É a cumbuca mais cara, porque é mais leve que a da manga e custa R$ 10”, conta Silvânia Alves, que mora em uma casa com uma mangabeira na frente.

A mãe dela, Maria José da Silva, dona Zeza, é uma líder da comunidade. Chegou ali quando casou com Daniel Clementino, saindo do Engenho Canto. Mora na Ilha das Cabras há quatro décadas e lembra de quando as mangabeiras eram mais comuns. Há na comunidade uma área alagada e, logo depois, várias fruteiras espalhadas a quase se perder de vista. “Era muita mangaba, muita mesma. Lá para o outro lado era só mangaba, mas o pessoal sempre bota fogo no mato. Aí a mangabinha está florando e se acaba tudo. E as mangabas também estão morrendo de doença. Aí eu não consigo vender e meu marido tem que ir buscar no Oiteiro”, conta dona Zeza.

O Oiteiro é um lugar de mata, com acesso sem restrições na estrada que dá em Serrambi, onde também há venda da fruta na estrada. O dinheiro da mangaba não é a principal fonte de renda dos moradores da Ilha das Cabras, mas é o que garante algum alívio nos meses de verão. “Com o salário, a gente só compra comida. A mangaba é um dinheirinho para comprar um ventilador ou alguma coisa que esteja precisando”, diz dona Zeza.

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Em 2005, o Ministério do Meio Ambiente elaborou uma lista com dez espécies de fruteiras prioritárias para conservação e uso sustentável. A mangaba estava na lista pela sua relevância para a indústria e o comércio de frutas no Nordeste. Com a fruta, a indústria faz polpa, sorvete e picolés.

Houve uma época em que a mangaba ajudava a abastecer o mercado de borracha mundial. Durante a Segunda Guerra Mundial o látex da mangabeira – que era produzido desde o século 19, mas em pequena escala – gerou interesse internacional. “Os japoneses ocuparam os seringais do sudeste asiático, principalmente o da Malásia, que era o maior produtor mundial. E houve então uma verdadeira corrida atrás de espécies que produzissem látex. Porque a seringueira, que produzia aqui na América do Sul, não dava conta. Aí a mangaba gerou interesse. Não só a mangaba, mas a maniçoba também. Muitas cidades do Brasil central surgiram por conta do látex da mangaba. Foi o ciclo da borracha da mangabeira. Por alguns anos, o látex foi muito mais importante do que a fruta”, conta Josué Francisco.

A produção não acontecia só no cerrado, mas no litoral também. Pernambuco produzia pouco, mas levou a fama. “Porque era daqui do porto de Recife que saía toda a produção que vinha do interior. Aí ficou conhecido no mercado internacional como Pernambuco Rubber (borracha, em inglês)”, conta Josué.

Não era uma borracha de boa qualidade e, quando acabou a guerra, acabou também a produção de borracha de mangaba. “Não teve mais importância porque era um processo pouco eficiente. Se fazia uma sangria no pé de mangaba e depois tinha que se mudar de árvore. Só depois de anos, é que se voltava para aquela mesma árvore. A seringueira não. Você faz mais de 20 sangrias na seringueira. A morfologia dos vasos que produzem látex são diferentes, e a seringueira é muito mais eficiente”, explica o pesquisador da Embrapa.

Atualmente, a Embrapa estuda as propriedades antioxidantes da mangaba – é uma fruta rica em vitamina C – analisando qual a variedade que tem mais desse componente, que é bastante demandado pela indústria farmacêutica e pela de cosméticos.

Os resquícios da mangaba em Pernambuco

A pesquisa da Embrapa mostrou que as mangabeiras que restam em Pernambuco estão concentradas e distribuídos em bosques. Em Ipojuca, no Oiteiro e na Ilha das Cabras, por exemplo, assim como em Gameleira e Catuaminha, na Ilha de Itamaracá. Na maioria das vezes, se encontram de forma esparsa no meio de vegetação nativa ou cultivada. “Muitas populações de mangabeira são sobreviventes de antigos cultivos de coqueiro ou surgiram de forma espontânea, posteriormente, na entrelinha dessa cultura”, diz Josué.

Dentre os municípios, é a Ilha de Itamaracá que abriga a maior área (1.283,65 hectares), o que equivale a 40,5% das áreas com mangabeira do estado, enquanto o município de São José da Coroa Grande possui a menor, apenas 1,95 hectares.

Uma longa fila de apaixonados pela mangaba

A mangaba é uma fruta que costuma arrebatar paixões. São ainda do século 16 os primeiros registros escritos com elogios à fruta no Brasil, que era bastante consumida pelos indígenas. O primeiro registro da fruta em língua portuguesa é do jesuíta Brás Lourenço que relatou em uma carta de 1554 o uso da mangaba como alimento.

Para Josué Francisco, as mais belas e detalhadas descrições da época, foram escritas pelos naturalistas holandeses Georg Marckgraf (Jorge Marcgrave) e Willem Pies (Guilherme Piso), membros da comitiva de Maurício de Nassau. Um trecho diz: “lisonjeia tão deliciosamente a gula e tem sabor tão agradável, que não sei se a América produz alguma fruta mais bela e gostosa”

Os holandeses foram grandes entusiastas da mangaba. “Parece que o pioneirismo no cultivo da mangabeira para exploração dos frutos deu-se mesmo em Pernambuco, não existindo até então nada comparável ao plantio dos coqueiros, mangabeiras e outras frutíferas nos jardins do Palácio de Vrijburg (Friburgo), no Recife, realizado por Nassau”, escreveu Josué no artigo “Mangabeira: uma espécie historicamente pernambucana”.

Até o nome científico evidencia como a mangaba é querida. É Hancornia speciosa: em que Hancornia foi dado em homenagem ao botânico inglês Philip Hancorn e speciosa significa bela, magnífica, vistosa.

Três perguntas para Josué Francisco da Silva Júnior

Por que a mangaba está desaparecendo de Pernambuco?

Em Pernambuco a gente se vangloria muito, como pernambucano, da importância de Pernambuco, do crescimento de Pernambuco, dessa megalomania pernambucana de desenvolvimento, de ser o estado mais desenvolvido no Nordeste. Mas isso tem um preço. Em relação à mangabeira teve um preço altíssimo. Porque toda a área de tabuleiro costeiro foi desmatada para plantio de cana-de-açúcar, e quase toda a área de restinga teve sua vegetação nativa, original, destruída para construção de empreendimentos turísticos. Ali em Carneiros, por exemplo, ainda vemos algumas mangabeiras, mas estão construindo muitos condomínios nos últimos anos e estão sendo destruídas. Mangaba em Pernambuco está condenada ao desaparecimento. 

Seus alertas sobre o desaparecimento da mangaba em Pernambuco não são tão recentes. Há pesquisas suas já de alguns anos, quase uma década, alertando sobre isso. Foi feito algo em Pernambuco para proteger as áreas remanescentes de mangaba?

Começamos esse trabalho de mapeamento das áreas primeiramente em Sergipe, que é hoje o estado mais importante para a mangaba. Lá, vimos o envolvimento da comunidade, o movimento das catadoras de mangaba, que é muito forte. Aqui não tem isso. Em Sergipe, a gente envolveu as catadoras de mangaba que, por sua vez, convocaram o Ministério Público Federal. Houve uma cobrança maior, deu uma visibilidade maior. Mas aqui em Pernambuco, não. Acredito, primeiro, que é porque a planta já desapareceu de muitas áreas de ocorrência. Há jovens que nunca comeram ou sequer viram uma mangaba. A população não tem mais aquele mesmo vínculo que tinha antigamente com a fruta. Você não vê, por exemplo, a mangaba nos mercados, feiras. Vê no supermercado, de vez em quando, aparecendo caríssima numa embalagem de plástico. E muito raramente e muito feia, sem qualidade nenhuma. Em Pernambuco não há uma mobilização pela preservação das áreas de mangaba, porque ela não tem mais aqui a importância cultural que teve um dia. Foram perdidos muitos vínculos. E ter vínculos é muito importante para uma luta.

O que estamos perdendo com esse desaparecimento da mangaba de Pernambuco? O que as novas gerações estão perdendo?

Primeiro, o vínculo cultural com essa espécie, que já foi muito importante. É difícil você ver um habitante do litoral que não coloque o suco de mangaba como um dos seus favoritos, entre os seus top 5. E do ponto de vista ecológico também, porque você perde uma espécie que é de grande importância para aqueles ecossistemas onde ela ocorre. Tanto a restinga como o tabuleiro costeiro. E há um terceiro ponto, que é o econômico, porque é uma fruta que atualmente, dentre as frutas nativas, está entre as dez frutas nativas que chamamos de plantas para o futuro. Ou seja, ela tem um potencial muito grande de mercado. Sobretudo de um mercado novo que tem crescido bastante, que é esse mercado da sociodiversidade. Então, Pernambuco já não participa mais desse mercado. O que chega de mangaba, para a indústria, vem todo da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Não vem daqui de Pernambuco.

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