Boa parte da comunidade da Cocheira vai sair do mapa com a construção da ponte que ligará o bairro do Cordeiro, na zona oeste, aos de Casa Forte e Santana, na zona norte do Recife. Sem negociação prévia com a prefeitura do Recife, os moradores foram informados, há pouco mais de duas semanas, que deveriam ir à Autarquia de Urbanização do Recife (URB) para saber quanto iriam receber de indenização por suas casas. Moradores ouvidos pela Marco Zero dizem que, entre 2022 e 2024, muitas das casas foram medidas por técnicos da URB mas eles ainda não sabiam exatamente para o que seria. E que, mesmo com os rumores do projeto da ponte existindo há vários anos, achavam que seria mais um projeto que nunca sairia do papel.

Quando a ponte da Iputinga foi inaugurada, a uns quatro quilômetros daqui, a gente achou que essa ponte daqui não iria sair mais, conta o morador Luiz Augustinho, que há aproximadamente seis anos vive na comunidade, em uma casa de dois andares. Foi ele quem praticamente informou aos moradores de Cocheira também conhecida como Argolinha sobre a desapropriação depois que compareceu com alguns vizinhos à reunião da URB, no começo de novembro.

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A Marco Zero esteve presente naquela reunião em que tanto os técnicos da URB quanto um homem que se identificou como funcionário da secretaria de Governo da Prefeitura do Recife garantiram que uma reunião naqueles mesmos moldes, de apresentação do projeto e das desapropriações, seria realizada no Cordeiro. No entanto, isso nunca aconteceu. Já chegaram com um papel dizendo que tinha que ir na prefeitura para ver a indenização. Não teve conversa nem apresentação nenhuma, contou Patrícia Maria, mãe solo de três filhos e que não sabe quando terá de sair da casa onde mora há dez anos. Na prefeitura, ela foi informada que sua casa, com dois quartos, sala, cozinha, área de serviço e um pequeno terraço, valia R$ 45 mil. Não sei para onde vou com esse valor, reclama.

A comunidade de Cocheira é um lugar pobre, mas não miserável. O terreno era usado para criação de cavalos o local fica ao lado do Parque de Exposição de Animais do Cordeiro. Pelas imagens do Google Earth, dá para ver que a ocupação da área com moradias se intensificou bastante de uma década para cá. Os moradores acreditam que vivam hoje lá entre 50 e 60 famílias. A maioria dos moradores ouvidos pela Marco Zero contou que mora lá desde pouco antes da pandemia. Muitos vieram de outras comunidades ao redor: aproveitaram as construções das cocheiras dos animais sem uso e foram construindo suas casas. Hoje, são casas de alvenaria, muitas delas com pisos de cerâmica e gradeadas. Há ainda casas confortáveis, com amplos terraços e garagem.

Quando a Marco Zero esteve na comunidade, na semana passada, as indenizações oferecidas pela prefeitura variavam de R$ 14 mil a R$ 59 mil. Todos os entrevistados reclamaram desses valores. Estão oferecendo valores que nem mesmo um barraco aqui próximo a gente consegue comprar. A gente está saindo da nossa moradia que a gente construiu, que a gente investiu, que a gente criou sonhos, para ficar ao léu, desabafou Luiz Fernando de Lima, que mora lá com a família há oito anos. Mas a família da minha esposa vive aqui há mais de 20 anos, afirmou.

De acordo com os moradores, semanalmente a URB tem chamado dez famílias para irem até a prefeitura para ficar sabendo o valor da indenização. A casa de Luiz Fernando foi toda medida, mas, quando ele chegou lá, a foto que lhe mostraram era a da casa de um vizinho. A URB estava novamente fazendo a medição da casa dele quando a reportagem foi ao local. Ninguém sabe como é que eles chegaram a esses valores. É muito abaixo do que a gente esperava. Estão oferecendo R$ 40 mil em casas com cerâmica, com PVCisso é um absurdo, reclamou Luiz Fernando.

As desapropriações da ponte Casa Forte-Cordeiro

Desapropriações para a ponte: 

Somente no Cordeiro
Edificações: 102
Terrenos: 05
Total: 107

Desapropriações para o sitema viário:

Cordeiro
Edificações com desapropriação total: 9
Edificações com desapropriação parcial: 10
Edificações com recuo de muro: 13

Santana
Edificações com desapropriação total: 3
Edificações com desapropriação parcial: 3
Edificações com recuo de muro: 5

Total: 43 (sendo, 12 total, 13 parcial e 18 somente o muro)

Fonte: Apresentação da URB na comunidade de Santana

Sem trabalho e cuidando do pai cadeirante, Raiane Marques da Silva, de 24 anos, não quer deixar a casa que a família construiu devagarzinho ao longo de uma década. Aqui é um lugar tranquilo. Um lugar que a gente não vai encontrar mais. Todo mundo é, vamos dizer, uma mesma família. Faz mais de dez anos que eu moro aqui, mais de dez anos que eu deixo minha porta aberta. As crianças brincam na rua, onde a gente vai encontrar um lugar desse?, questionou. Para a casa dela, a prefeitura ofereceu R$ 40 mil.

O outro lado (Santana), como é uma classe mais nobre, é um pessoal que tem uma condição aquisitiva maior do que a nossa, tiveram palestra da prefeitura, tiveram representantes, fizeram até uma movimentação com advogados. Aqui a gente praticamente não teve nada. O que veio foi um vereador de não sei de onde dizer que ia ajudar, que não ajudou em nada. E um pessoal do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) leu a reportagem de vocês [da Marco Zero] e veio aqui, disse que nos daria apoio para pegar informações na prefeitura e apoio jurídico. Eu senti firmeza neles, mas outro pessoal daqui não sentiu, então acabamos descartando esse apoio. E agora está a prefeitura aqui medindo as casas de novo. Estamos sozinhos, lamentou um morador, que não quis se identificar.

Indenizações pagas pela prefeitura não compram moradia digna

No ano passado, o mandato do então vereador Ivan Moraes (PSOL) publicou a nota técnica (Des)Política habitacional do Recife, que levantou dados sobre as desapropriações feitas na capital. A publicação informa que de 2013 a 2023 quase 70% das indenizações pagas na cidade do Recife foram abaixo de R$ 50 mil enquanto um imóvel de 40 m² (tamanho base das unidades habitacionais do MCMV Faixa 1) no bairro com o menor valor de metro quadrado da cidade custaria no mínimo R$ 130 mil.

Outro dado mostra que as famílias desapropriadas não conseguem sair de suas casas para uma moradia digna com o valor das indenizações pagas pela Prefeitura do Recife: das 2307 desapropriações realizadas pela URB e pela Secretaria de Saneamento, no período de 2013 a 2023, 469 delas, ou seja, 20,2% foram indenizações com valores abaixo de R$ 10 mil.

Moradia avaliada em R$ 14 mil

Há menos de dois anos, o barbeiro Pablo Fernando foi morar na Cocheira na casinha que a avó dele morava. É bem pequena, com um vão de sala e cozinha, um quarto, um corredor estreito e um banheiro. Na URB, foi informado que receberia R$ 14 mil de indenização.

Na verdade, a gente não é contra a ponte. A gente só queria um preço justo para a gente poder arrumar uma moradia em outro lugar. Eu, como tenho dois filhos pequenos, não posso sair daqui para uma casa que seja ainda menor, diz Pablo, que mora lá com a companheira, um bebê de quase dois anos e outro de apenas quatro meses. A gente estava contente, feliz, achando que ia receber um valor justo, disse ele, que reclama que o pequeno banheiro não foi medido pelos técnicos da URB.

Se o valor não mudar, Pablo e a família pensam em ir para um terreno ou barraco em outra ocupação permanecendo em uma moradia precária que contribui para o número de ocupações irregulares no Recife. E depois, quando a prefeitura quiser tirar a gente dessa outra ocupação, vai ver que eu já recebi uma indenização daqui. Ou seja, chegar lá vamos ter que botar no nome de outra pessoa. Isso vira um ciclo. A gente quer sair daqui para uma moradia digna, mas com esse valor não tem como, vamos ter que ir para outra ocupação, diz.

Luiz Agostinho ainda não foi chamado para ir saber quanto vai ser sua indenização. Está apreensivo de que o valor não seja condizente com o que gastou. A casa que construiu em Cocheira tem 100 m², quatro quartos, cozinha grande, dois banheiros. É uma casa ótima. Uma casa dessa em algum bairro próximo daqui não é menos de 200 mil, diz ele. Vamos supor que eu gastei mais de 120 mil na minha casa. Não sei se a prefeitura vai me oferecer um valor desse. Porque eles chegam e dão a proposta. A gente aceita ou não. Se não aceitar, derruba de todo jeito e depois a pessoa se vira na Justiça. E aí pode demorar anos, lamenta.

Prefeitura não dá respostas sobre desapropriações

A MZ questionou a prefeitura do Recife sobre o motivo de não ter sido feita reunião com os moradores do Cordeiro, quais os critérios para definir os valores das indenizações e quais serão os imóveis desapropriados. A prefeitura não respondeu. A MZ então abriu uma solicitação via Lei de Acesso à Informação (LAI) e, quando for respondida, essa reportagem será atualizada.

Ao responder um outro pedido de informação em janeiro deste ano, que está disponível no Portal da Transparência, a URB disse, naquela época, que, como o projeto ainda se encontrava em fase de ajuste, não se dispõe de elementos concretos que justifiquem notificação e/ou diálogo com as comunidades a serem afetadas pelo mesmo. Ou seja, o diálogo com a população quando existe só é feito após o projeto já estar todo pronto.

Neste mesmo pedido de informação do mês de janeiro, a URB informou que não havia previsão de vagas em habitacionais para as famílias desapropriadas e que a forma de compensação prevista, até agora, é indenização por benfeitoria, e terreno, se for apresentado o respectivo RGI do imóvel. Ou seja, como são comunidades de ocupação, sem escritura, só entra na indenização o valor daquilo que foi construído.

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