Chegou a vez de Salvador enfrentar as sombras dos espigões à beira mar
por Júlia Moa
“Não construir prédios em lugares de preservação ambiental, é sobre isso que fala [no trecho da música Lucro] a especulação imobiliária, é bem mais simples do que parece. Temos que ficar com os olhos abertos. Pelo direito da nossa cidade. Não faremos carnaval debaixo de prédios e sim na frente do mar. Tirem as construções da minha praia, eu não consigo respirar”, foi o discurso fervoroso de Russo Passupuso minutos antes de agitar uma multidão em volta do trio elétrico Navio Pirata, da Baiana System, na folia deste ano.
No mesmo local, o nobre Largo do Campo Grande, região central de Salvador, só que nos idos de 1980, outra figura provocadora também expressou críticas em relação ao assunto. A arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, conhecida por diversos projetos na cidade, sugeriu a um repórter que os espigões (prédios altos) erroneamente erguidos ali, que ainda hoje obstruem a vista do mar e bloqueiam a circulação do ar, deveriam ser demolidos.
A indignação de Russo veio a calhar. Um pouco antes dos ritos carnavalescos ecoarem pelas ruas, a prefeitura municipal abriu um leilão para vender 40 terrenos de áreas verdes, distribuídos por quase 10 bairros da cidade, com lances iniciais de R$ 10 milhões. Pessoas ligadas ao ativismo urbano-ambiental tentam barrar rapidamente os eventos que estão previstos para acontecer entre os dias 7 e 15 de março.
A discussão, quando o assunto é a resistência dos moradores contra a indústria da destruição que há décadas tenta instaurar na capital a verticalização predatória em diversas localidades, não finda. Numa mesma receita de bolo – grandes construtoras envolvidas, interesses econômicos e políticos declarados, e nomes de figuras públicas comprometidas – a fatia indigesta vai para a população que precisa mover estratégias para tentar frear a máquina de lucro. A mesma engenhoca presente na canção de Passapusso quando ele ironiza: “[Salvador], você pra mim é lucro”.
A dor de cabeça atual parece até o roteiro do filme Aquarius, dirigido pelo cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho. Acompanhem: na mesma época em que Bo Bardi cutucava o poder público soteropolitano com suas opiniões embasadas, lá no final da década de 1980, uma pacata rua sem saída, a Barro Vermelho, no boêmio bairro Rio Vermelho, encantava os residentes com a vista para o mar. De lá para cá, tudo mudou. A pequena e charmosa praia do Buracão começou a atrair não apenas turistas, mas estabelecimentos comerciais com seus altos decibéis, que tiram o sossego dos vizinhos além de causar tumulto no tráfego, e a construtora Novonor (anteriormente conhecida como Odebrecht). O plano deles é erguer três torres entre 16 e 18 andares em dois terrenos de frente para a praia, desrespeitando diversas leis.
O economista Miguel Seheb conta que, inicialmente, havia somente casas residenciais ao lado da praia e edifícios no outro lado da rua. Então, surgiu um prédio com três andares para cima e três para baixo, respeitando os limites de nove metros de altura a partir do cordão da calçada. Mais tarde, outro prédio no final da rua começou a ser edificado, fechando o acesso à praia aos moradores e frequentadores dos bairros vizinhos. Com essas novas edificações e o risco da verticalização irregular dando as caras no ambiente, foi formada há dez anos a Associação dos Moradores do Barro Vermelho, que hoje totaliza atualmente 334 pessoas.
Sempre com os radares ligados, em 2023, a turma da Associação decidiu investigar por conta própria uma movimentação suspeita. Foi descoberta a venda (por aproximadamente 16 milhões) de três terrenos, dois unificados, nos quais as casas ali erguidas teriam sido propositalmente degradadas para obter vantagens nos índices de construção permitidos. Ou seja, uma nítida intenção de não cumprir os padrões estabelecidos pela legislação para regular e controlar aspectos específicos relacionados à implantação de edifícios em determinadas áreas.
Em duas certidões de ônus reais acessadas pela reportagem, é possível verificar os detalhes dos imóveis, assim como a venda e compra. Não foi difícil para os moradores verificarem que o endereço do comprador é o escritório da Novonor em Salvador.
“É um absurdo o que está ocorrendo, eles nunca nos procuraram para conversar. Estamos muito preocupados. Trata-se de uma empresa com um sério histórico de corrupção e que é a mesma por trás da mineradora Braskem, envolvida no enorme desastre ambiental em Maceió, que prejudicou centenas de famílias ao deixá-las sem ter onde morar”, desabafa Miguel ao relembrar o histórico de falta de responsabilidade e consideração do grupo empresarial. Alarmados com o fato, os integrantes da associação de moradores criaram uma nova frente, o movimento apartidário SOS Buracão, que visa reunir todos os interessados na proteção da vizinhança.
