Querido garoto da camiseta azul…Sou o rapaz de camiseta rosa, aquele que estava lendo a biografia da Rita Lee, sentado bem à sua frente no ônibus 978A-10, que pegamos no Terminal Cachoeirinha, sentido Barra Funda.

Quero te dizer que me diverti muito perto de você e dos seus amigos, mesmo interrompendo a leitura em alguns momentos. Fui levado pelas suas confissões e risadas ao fundo.

Fiquei refletindo e tentando voltar ao tempo para perceber em qual momento da minha vida deixei de ser o garoto para se tornar o “rapaz à frente”, deixei de ser o que vai com os amigos para ser o que vai com o livro.

Ilustração @Magno Borges

Eu gostaria de poder te dizer que você tem um sorriso lindo e que é uma pena estar tão ocupado em se esconder, em ser quem não é, que não te sobre tempo para sorrir mais vezes.

Você, por muito tempo, não entenderá o que se passa. Será como vela, quanto mais chorar, mais luz encontrará dentro de si. Eu gostaria de poder te dizer que sei que tem noites mal dormidas. Mas acredite, acredite mesmo, não há nada de errado com você.

Não precisa ter vergonha da maneira que cruza as pernas, do tom da sua voz ou da sutileza dos seus gestos. Esse jeito que você parece se envergonhar é lindo, simplesmente porque é você.

Eu gostaria de poder te dizer que a pessoa que um dia te amar de verdade, te amará desse jeitinho. Ela amará cada detalhe do seu corpo, dos seus gestos, da maneira que sorri, do brilho que traz nos olhos, da sua risada única, do seu desastre na cozinha, da sua voz desafinada cantarolando pela casa e do jeito que você dança.

Ilustração @Magno Borges

E quando, inevitavelmente, na mesa do almoço de família, alguém soltar aquele velho clássico: “Cadê as namoradinhas?”, você vai sorrir de canto e responder, sem abaixar a cabeça: “É namoradinho. E ele é um cara encantador.”

Se alguma tia engasgar, bate nas costas dela. Mas não bata no próprio peito tentando afirmar o que te fere para caber no desconforto dos outros. As pessoas que te amam — mesmo tropeçando nas palavras — também estão em processo de entender. Tenha paciência com elas. E com você também.

Eu sei do medo de alguém descobrir antes de você estar pronto. Eu sei do silêncio no jantar quando o assunto é “aquele vizinho afeminado”. Eu sei do nó na garganta ao ouvir a palavra “viado” sendo cuspida como ofensa no corredor da escola. Mas deixa eu te contar uma coisa que ninguém me contou quando eu era você: essa descoberta que você está fazendo é, na verdade, um reencontro. Não é que você esteja se tornando alguém diferente. Você só está tirando as camadas que o medo colocou sobre o seu brilho.

Vai chegar o dia em que você vai rir sem medo. Dançar como quiser. Amar quem quiser. Vai andar pela rua e, mesmo que alguns ainda olhem torto, você não vai mais se encolher. Porque vai ter entendido que sua existência é, por si só, uma vitória.

Até lá, vai com calma. Se cuida. Escolha com carinho as pessoas com quem dividir seus anseios. E quando der medo, lembra de mim. Lembra que há muitos meninos como você — alguns escondidos, outros já de peito aberto — e que todos, de algum jeito, estão torcendo por você.

Eu gostaria de te dizer tantas coisas, querido garoto da camisa azul… talvez porque eu, antes de ser o rapaz que vem com as biografias que quer devorar, já estive aí, com a mesma cor de camiseta.

— Inspirado pelas leituras de Jessica Gómez

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